Querido Maior Amigo,
Perdoe-me a demora, mas é que a tarde é fria, a bagunça é
muita e o lápis não tem dado efeito. Perdoe-me essa mania de pôr a culpa em
tudo menos em mim. Mas é que, tendo culpa ou não, esses caquinhos ajudam. Ou
melhor, atrapalham. Até eu procurar o medo de me cortar com eles e jogá-lo fora
para que possa catá-los pelos cantos, há uma grande tardança. Já senti o cheiro
de café fresco vindo da janela mal lavada do vizinho e lembrei-me de você
durante vários dias. Nunca entendi essa sua adoração por café, nem porque muita
gente tem hora marcada para tomar, e muito menos essa minha demora a escrever algo.
Tal atraso contado em 57 cheiros de café em fins de tarde.
Ainda acho que não é a hora de escrever-te. Os sons da
marmoraria ao lado perturbam-me e a inspiração ainda está se arrastando para
aparecer. As palavras que se repetem por aqui me irritam, mas ainda assim
satisfazem. Acho que endereço essa carta a pessoa errada, mas tudo bem, provavelmente
você compreenderá. Pois que tomemos outro rumo agora.
Sabes que ontem, repicando a bagunça de minha estante, achei
agendas de até nove anos atrás? Minha escrita era fina e arruaça, como a de
qualquer criança que acaba de entrar no ensino fundamental. A mais antiga
agenda ainda possui o mesmo cheiro de perfume de bebê com uma essência floral
de quando me foi entregue, e há uma singela dedicatória de minha mãe no verso
da capa. A maioria das páginas estão arrancadas, mas há alguma em que relato
dias sem preocupações e a repercussão de mais uma novelinha infantil da qual
não deixava de assistir um capítulo. Há um diário, do qual é minha rede de
anotações antigas preferida, em que relato quase que diariamente meus
devaneios. Em sua última página, há uma dedicatória minha para o próprio
diário, em que o declaro meu maior amigo, dito como um anjo que me acompanha, e
o agradeço por tal companhia. Aos 10 anos, vá lá, eu realmente não tinha muitos
amigos, e foi naquele pequenino e cor-de-rosa diário que percebi o quanto
escrever me ajudava. Então declarei-o meu maior amigo, pois na minha mente ele
conseguia até me alegrar, coisa que só
garotinhas de 10 anos que pensavam como eu poderiam explicar, o que penso que
hoje, ou até naquela época, não existiam. Na verdade, acho que nunca existiram
garotinhas que pensavam como eu. Bom pra elas, melhor pra mim.
O que minha cabeça de 10 anos pensava, hoje nessas palavras
faz mais sentido. Não era o diário que era meu maior amigo, nem ele que me
alegrava. Escrever fazia isso por mim. Despejar tudo em palavras sempre fora
para mim uma solução agradável. Não incomodava ninguém, e naqueles papeis
coloridos que ficavam escondidos debaixo da cama todas essas palavras eram
gravadas e aliviadas rapidamente, fazendo-me sentir melhor. Esse alívio, muitas
vezes, acontecia em tardes frias, no quarto bagunçado e com o cheiro de café
vindo da janela mal lavada do vizinho... Não que isso tenha me lembrado do
diário, como dito no começo desta carta, mas a introdução que fora endereçada a
outra pessoa coincidentemente faz alusão aos meus dias de escrita boba e
acolhedora.
Percebo por fim que nunca havia escrito uma folha de
despedida para meu antigo maior amigo. Digo
antigo pois sim, esta carta é endereçada ao atual, apesar de meus escritos agora
serem para o antigo. Perdoe-me pela confusão. Voltando então, perdoe-me mais
uma vez pela demora, meu (antigo) maior amigo. Acho que enfim é a hora de
dizer-te adeus. Agradeço-te por toda a companhia, tu és de fato algo
eternamente valioso pra mim. O que seria da menininha de 10 anos de não fosse a
tua companhia? Agradeço-te por ter-me mostrado esse mundo de palavras que é tão
reconfortante.
Um último muito
obrigada,
Da garotinha de 10 anos
que pensava (logo, escrevia) demais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário